O que torna Torre Bela um objecto fascinante é o seu carácter excepcional. Em primeiro lugar, porque teve muitos meios, técnicos e financeiros, além de bons contactos junto do movimento revolucionário (MFA), o que lhe permitiu prolongar o seu campo de acção no tempo (oito meses de rodagem) e no espaço (acesso a cenários supostamente fechados, como a sede da Polícia Militar). Excepcional ainda porque a realidade que descreve - o processo de ocupação de uma herdade pelo "povo trabalhador", a 23 de Abril de 1975 - escapou ao padrão das várias iniciativas de Reforma Agrária.
Aqui não estamos no Alentejo, dominado pelos comunistas e pelos seus projectos de UCP (Unidades Colectivas de Produção), mas no Ribatejo, feudo das correntes mais direitistas da sociedade portuguesa. A ocupação da herdade de Torre Bela - propriedade de D. Miguel de Bragança, Duque de Lafões, que é entrevistado no início do filme, com ar de enfado, a confessar não saber quantas pessoas trabalham para si - acontece à margem de qualquer tipo de estratégia partidária ou ideológica, mesmo se Camilo Mortágua, um dos ideólogos da LUAR (organização de extrema-esquerda), por lá aparece a querer conduzir as massas.
O que Harlan encontrou naquele imenso latifúndio, com os seus 1700 hectares transformados em reserva de caça, foi um raro microcosmos: trabalhadores rurais e homens proscritos, sem nada a perder, inventando para si mesmos uma utopia. A câmara capta tudo o que lhe passa à frente: os plenários caóticos, as discussões, as questiúnculas, as lideranças musculadas (Wilson, o cabecilha que rouba a palavra a toda a gente e se deixa toldar pela volúpia da mudança em curso), as resistências à lógica de partilha, os discursos de megafone, Zeca a cantar Grândola num dia de chuva, a relação com os militares (que incentivam a entrada no palácio, porque o povo "não pode ficar à espera" da lei) e toda a energia, todo o ímpeto e todas as contradições de um processo que estava, desde o início, condenado ao falhanço que as legendas finais confirmam (recuperação dos terrenos pelos Bragança).
Mais do que a nostalgia da revolução, Harlan fixa a amargura de uma experiência revolucionária em estado puro. Tão bela como precária, tão brutal como impossível. "É um dos mais fabulosos documentários da história do cinema", diz Paulo Branco. E a frase talvez seja menos exagerada do que parece à primeira vista."